O escritor fluminense, autor de ‘Os Sertões’, é celebrado pela segunda vez na Festa Literária Internacional de Paraty.
A 17ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, que começa nesta quarta-feira 10 e vai até o dia 14 de julho, tem como homenageado o escritor fluminense Euclides da Cunha (1866-1909), autor de um dos maiores clássicos brasileiros, Os Sertões. O autor já foi homenageado em 2009, ano que marcou o centenário de sua morte, e volta a ser lembrado quando se completam 110 anos da publicação de sua obra À Margem da História, em que o autor reúne ensaios sobre as questões naturais que cercam a Amazônia ao passo que deflagra as péssimas condições humanas encontradas no vasto território.
O fato é memorado pelo pesquisador Francisco Foot Hardman que, desde o início dos anos 90, dedica parte de sua produção científica a Euclides da Cunha. Hardman lançou o ano passado, pela editora Unesp, juntamente com os pesquisadores Leopoldo Bernucci e Felipe Rissato, uma nova edição da obra, pouco conhecida, mas que ele considera à altura do popular livro [Os Sertões] que narrou a Guerra de Canudos, no interior da Bahia.
“Em À Margem da História, publicada em 1909, ano de sua morte, Euclides deu continuidade à radicalidade do seu pensamento sócio-ambiental, como ele já tinha começado a fazer em Os Sertões, publicado em 1902″, explica. Para Hardman é inegável o tom político e reflexivo que o autor traz à Flip, sobretudo diante as últimas ações do governo com a área do meio ambiente, mas não só ela. “Num momento em que também a cultura e a educação estão sendo atacadas, é importante resgatar autores como Euclides, estimular a criação de conteúdos e estimular interesse acerca de sua obra”, atesta.
Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador elencou aspectos importantes de Euclides da Cunha que merecem ser relembrados em meio à homenagem da Flip.
Pensamento atual
Segundo Hardman, na obra À Margem da História, Euclides narra uma longa viagem pela Amazônia, como assessor especial do ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. Devido a um conflito na fronteira do Amazonas com o Peru, por conta do ciclo da borracha, ele foi designado pelo governo para chefiar uma missão diplomática ao longo do Rio Purus, e entre outras questões, determinar melhor as fronteiras entre Brasil e Peru e as nascentes do Rio Purus.
A questão social
Hardman também coloca a forte inclinação do autor para as questões de fundo social. “Euclides também viu a questão humana, os seringueiros trabalhando com condições análogas às da escravidão, abandonados à própria sorte. Ele já tinha denunciado anteriormente o caso dos sertanejos, em Os Sertões, abandonados à própria sorte. Já naquela época, Euclides falava da necessidade de se elaborar uma legislação do trabalho”, explana o pesquisador.
Defesa da nacionalidade brasileira
Hardman coloca que, na obra, Euclides também se incomodava com o fato da Amazônia, que tem pelo menos 60% em território nacional, ser considerada fora da história nacional. “Já em Os Sertões, ele questionava sobre o que melhor representava a nacionalidade brasileira, e fazia menção à resistência do povo sertanejo que, ainda que vivesse em um meio natural inóspito, mantinham vivas sua cultura e imaginário”, conta. A reflexão também cabia aos seringueiros da Amazônia já que eram, em grande parte, migrantes nordestinos que fugiam da seca.
Questões diplomáticas
O pesquisador também ressalta a importância de Euclides ter reconhecido as porções internacionais da Amazônia, mesmo com sua forte visão nacionalista. “Ele reconheceu as porções amazônicas peruanas, bolivianas, colombianas, venezuelanas, e dos demais territórios fronteiriços”, coloca. Hardman ainda coloca que a viagem que Euclides fez ao longo da Amazônia, a pedido do governo, foi para evitar a eclosão de uma possível segunda guerra, como a Guerra do Acre, em 1903, relacionada ao ciclo da borracha. “Ele foi bem sucedido, justamente por essa visão diplomática”.
Tom político
Para o pesquisador, as concepções e o esclarecimento de Euclides da Cunha acerca de questões ecológicas, sociais, nacional e latino-americana trazem um tom político, reflexivo, para o atual momento vivido pelo País. ‘É evidente que, na época, ele fez um alerta, mas também uma grande advertência para as gerações posteriores, tanto que mais de 100 anos depois de sua morte, temos a atualidade de seu pensamento. Ele já dizia que a exploração do homem pelo homem, do trabalho em condições ruins e a predação da natureza eram devastadoras. Hoje, estamos diante de uma tragédia anunciada em relação à questão ambiental que pode trazer danos irreversíveis não só ao País, mas ao planeta”, finaliza.
Texto obtido em: Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/cultura/por-que-homenagear-euclides-da-cunha-e-fundamental-nos-dias-atuais/?utm_campaign=newsletter_rd_-_10072019&utm_medium=email&utm_source=RD+Station
Flip resgata força de ‘Os Sertões’ com uma programação ainda mais diversa e política
A entrada em Os Sertões, de Euclides da Cunha, é difícil. A essa obra prima da literatura brasileira entra-se pela terra, em uma descrição geográfica que converte-se em um caminho tão áspero quanto o chão queimado para aqueles acostumados apenas às narrativas literárias mais tradicionais. Propor outras portas de acesso e outras reflexões sobre a obra é um dos desafios ao que se propõe a 17ª Festa Literária Internacional de Paraty —a Flip 2019—, que acontece de 10 a 14 de julho.
“Euclides é um autor que trata do Brasil, principalmente em Os Sertões, ao fazer uma retrospectiva da história do país até chegar à Guerra de Canudos (1896-1897). Acho que momento atual é perfeito para falar de tudo isso”, explica a curadora Fernanda Diamant em entrevista ao EL PAÍS. A obra, originalmente publicada em 1902, nasceu nas páginas do jornal Província de São Paulo (antigo Estado de São Paulo, quando Euclides, então repórter, cobriu a Guerra de Canudos e depois transformou sua experiência em uma espécie de tratado antropológico-geográfico sobre a destruição do arraial de Canudos pelo exército brasileiro. Agora, sua atualidade será debatida por 33 intelectuais —sendo 17 mulheres— de dez nacionalidades, em áreas que vão da sociologia à fotografia. A Flip 2019 ano terá 21 mesas, cada uma com 45 minutos de duração e diferentes formatos, como conferência, entrevista e performance.
“Sempre gostei das multilinguagens e tentei trazer isso para a Flip”, continua a curadora. Também foi ideia dela valorizar a não-ficção, convidando personalidades como o jornalista norte-americano David Wallace-Wells —que lança o livro A Terra Inabitável e fala sobre os problemas ambientais já antecipados por Euclides da Cunha— ou a artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba, que fala de gênero e pós-colonialismo.
“Euclides da Cunha foi um dos pioneiros no Brasil em unir não-ficção e literatura. Ele tem um lado geógrafo, que faz essa descrição da terra, tem o lado repórter e o lado de estilista da língua. Transforma em poemas pedaços dos livros, é muito gênio”, diz Diamant.
Uma festa cada vez mais política
A curadora diz que “a política tem um papel super importante” na Flip 2019, ainda que há anos o evento tenha deixado de ser uma reunião de escritores para tornar-se também um lugar de congregação de diferentes militâncias de movimentos sociais. Este ano, destacam-se os jovens nomes da literatura africana, como a nigeriana Ayọ̀bámi Adébáyọ̀, que em seu livro de estreia (Fique Comigo) aborda questões como patriarcalismo, poligamia e conflitos relacionados à gravidez, ou o angolano Kalaf Epalanga, fundador do grupo Buraka Sound System, embaixador do kuduru mundo afora e escritor do “romance musical” Também os brancos sabem dançar.
Entre os destaques nacionais estão Marcela Cananéa, militante do Fórum de Comunidades Tradicionais, que participará de uma mesa com Marcelo D’Salete, quadrinista cujas obras reverenciam a cultura afro-brasileira, e Jarid Arraes, jovem poeta e cordelista cearense, que fala sobre raça, origens e deslocamentos.